Cinemateca urgente

Como já tratei deste assunto aqui, e há muita discussão no meio cultural de Porto Alegre sobre o futuro das três salas da Cinemateca Paulo Amorim na Casa de Cultura Mario Quintana, reproduzo o artigo da jornalista Laís Chaffe, que foi demitida de lá há algum tempo mas continua preocupada com o destino do projeto criado no local. Já coloquei anteriormente um post com uma informação quente que haverá mudanças radicais. A seguir, o texto da Laís, sem cortes:

"A doce vida, O grande ditador, A bela da tarde, Ladrões de bicicleta, Quanto mais quente melhor. Grandes clássicos, daqueles que não dá pra perder. Todos já exibidos na Cinemateca Paulo Amorim, que vem oferecendo ao público, há mais de vinte anos, uma programação de qualidade, com ingressos a preços bem inferiores aos das salas comerciais. Pois a sobrevivência dos três cinemas da Casa de Cultura Mario Quintana está ameaçada. Com o fim do patrocínio do Unibanco, em dezembro do ano passado, a Cinemateca enfrenta a pior crise de sua história. É grande e justificada a revolta dos funcionários, com salários atrasados há dois meses. A dívida da Associação dos Amigos da Cinemateca com o INSS passa de R$ 50 mil, aos quais se somam cerca de R$ 20 mil devidos a distribuidores e prestadores de serviços. Enquanto isso, a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) afirma estar trabalhando para superar a crise e até estabelece prazos – não cumpridos – para apresentar a solução. De concreto, até agora, nada.

François Truffaut, Claude Chabrol, René Clair, Jean-Luc Godard, Luchino Visconti, Roberto Rosselini, Ettore Scola, Carlos Saura, Pedro Almodóvar. Nomes familiares? Pois é. Todos eles já tiveram ciclos e mostras em sua homenagem exibidos na Cinemateca Paulo Amorim.

Pra entender melhor: a Cinemateca é um órgão da Sedac, mas sua Associação de Amigos responde pela contratação, salários e encargos trabalhistas de quase todos os funcionários, incluídos aí projecionistas, gerente, bilheteiros, porteiros. O Estado entra apenas com o salário de dois funcionários e com o espaço na CCMQ, luz, água e telefone. Cabe ainda à Associação manter e substituir equipamentos, pagar fornecedores, distribuidores, serviços de contabilidade, domínio na Internet, material de escritório. Tudo isso gera despesas aproximadas de R$ 20 mil mensais. A receita vem da bilheteria, sempre variável e insuficiente. Como um espaço dedicado ao cinema de arte não pode – nem deve – depender da venda de ingressos, as salas vinham funcionando graças ao apoio do Unibanco, de aproximadamente R$ 12 mil mensais. A dívida com o INSS começou antes mesmo do fim do patrocínio, já que os valores eram insuficientes. Quando o banco cortou os repasses, a situação ficou insustentável.

Governos - Justiça seja feita: a omissão não nasceu com esse governo. Em órgãos culturais do Estado, associações de amigos e patrocínios por elas captados deveriam servir para investimentos em melhorias, e não para a simples sobrevivência. Infelizmente, no caso da Cinemateca, nossos governantes não vinham garantindo nem isso. Quando o Unibanco cortou o patrocínio, ainda no governo anterior, o então titular da Sedac foi imediatamente avisado. Suas providências limitaram-se ao recado de que “apoiaria tudo” que a direção fizesse para superar a crise. Foi nesse momento que a Associação dos Amigos lançou sua campanha para salvar os cinemas, com grande apoio de público, cineastas, moradores do Centro, imprensa.

Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf, Samira Makhmalbaf, Jafar Panahi, Majid Majidi. O que eles têm em comum, além do fato de serem cineastas iranianos? Todos realizam filmes para os quais não há espaço em cinemas comerciais, mas que puderam ser vistos com prazer pelo público da Cinemateca Paulo Amorim.
E o atual governo? Mais de meio ano depois da posse, a Sedac está recém nomeando o diretor da Cinemateca, Joaquim Pereira, que vinha ocupando interinamente o cargo, após uma primeira e falhada tentativa de substituir o Luiz Pighini pela diretora interina Mariângela Machado. Pighini, que sucedeu o primeiro diretor e programador dos cinemas, Romeu Grimaldi, permaneceu no cargo por dez anos, de forma suprapartidária. Administrava e programava os três cinemas, recebendo elogios quase unânimes. Mesmo após a exoneração, da qual ficou sabendo por funcionários e depois da publicação no Diário Oficial do Estado – o novo jeito de exonerar -, segue como tesoureiro e programador dos cinemas. Faz isso pela Associação de Amigos, a pedido de colegas e preocupado com o futuro das salas e de seus funcionários.

Recursos: considerando-se a importância sociocultural da Cinemateca Paulo Amorim, os valores são insignificantes mesmo para um Estado em crise financeira. Um aporte de R$ 15 mil mensais já resolveria o problema. E aos que ainda pensam que se trata de falta de dinheiro, sugiro uma olhada nos valores previstos no Plano Plurianual de Investimentos em Cultura (veja aqui).

Saídas: a possibilidade de fechamento dos cinemas da CCMQ preocupa tanto quanto a alternativa de, a pretexto de salvá-los, entregar sua administração à iniciativa privada e/ou promover qualquer mudança que signifique alterações no perfil da programação. No último dia 25 de junho, a Secretária de Estado da Cultura, Mônica Leal, disse que teria, até o final daquela semana (29 de junho), uma solução em moldes que não alterariam as características de programação dos cinemas. Até agora, nada. Extra-oficialmente, recebo a informação de que a saída, via Banrisul, estaria na mesa da governadora Yeda Crusius, aguardando assinatura. Não sei se é verdade, mas tenho certeza de que basta vontade política para garantir o futuro dos cinemas e aliviar o sofrimento dos funcionários e de suas famílias.

Seja qual for a solução encontrada, ela é urgente e deve ser definitiva. Quando o atual governo assumiu, a dívida com o INSS era de R$ 13,5 mil. Hoje passa de R$ 50 mil e cresce R$ 4,5 mil a cada mês, mais juros e multas. Ou seja, a demora governamental em assumir sua responsabilidade custa caro e complica ainda mais a crise.

Nem tão pessoal. Desde 1997, até fins de abril deste ano, fui assessora de imprensa da Cinemateca Paulo Amorim, respondendo pela divulgação dos cinemas, criação e atualização do site. Defendi que o governo (ainda o anterior) tomasse imediatas providências para sanar o problema assim que o Unibanco anunciou o fim do patrocínio. Mantive a posição quando assumiu a nova secretária de Estado. Na condição de integrante do Conselho Fiscal da Associação dos Amigos da Cinemateca, me opus categoricamente à proposta de entregar a administração dos cinemas a uma empresa privada, defendendo ainda o debate amplo e transparente da crise com todos os interessados, incluindo profissionais de cinema e suas entidades representativas, estudantes, professores, moradores do Centro, novos sócios, público em geral; tudo com total, constante e imediata informação à imprensa a respeito das discussões e decisões tomadas. Todos aqueles que vêm acompanhando meu trabalho e opiniões conhecem a ordem cronológica dos fatos e não deixaram de perceber a relação óbvia entre eles: após me manifestar, fui afastada de minhas funções nos cinemas e colocada à disposição da Sedac. A esses, agradeço as mensagens de apoio. Em respeito aos demais, cabe este esclarecimento nem tão pessoal. Até porque a tentação de inverter as coisas por parte de quem é criticado é grande e a tática de responder a críticas tentando desqualificar quem as formula, fácil. Mas é feio, gente. Muito feio.

Em tempo: funcionária pública concursada, já enviei pedido formal à Sedac para ser colocada a disposição da Secretaria de Administração do Estado.

Lei da física: dois filmes não ocupam a mesma tela ao mesmo tempo. Abrir mais espaço ao cinema comercial significa diminuir o já reduzido circuito de arte.

Números recentes (meados de junho): das 2.050 salas de cinema do Brasil, apenas 438 não exibiam blockbusters, dividindo-se entre filmes brasileiros e estrangeiros (inclusive norte-americanos) de menor porte. Nas demais, três filmes: Shrek Terceiro (705 salas), Piratas do Caribe 3 (582) e Homem Aranha 3 (325).
Associação - No dia 15 de junho, a Associação dos Amigos da Cinemateca Paulo Amorim assinou um termo de compromisso com empresa privada estabelecendo um prazo de 30 dias para assinatura de um contrato a partir do qual a Cinemateca seria administrada por essa empresa. Membro da associação, participei de reunião anterior à assinatura, na qual a proposta foi apresentada, quando insisti na discussão pública do assunto e propus o cumprimento do estatuto da entidade, com definição de valores para chamada de novos sócios - hoje somos apenas nove, todos integrantes da diretoria. Não houve debate e o termo de compromisso foi assinado sem chamada de assembléia-geral extraordinária e sem que eu fosse avisada – por que será? Embora a reunião e a assinatura do termo de compromisso tenham ocorrido no escritório da Cinemateca Paulo Amorim e os convites tenham sido iniciativa do diretor Joaquim Pereira, presente nas duas ocasiões, a Sedac, questionada a respeito, afirma desconhecer a proposta e garante que, por razões jurídicas, ela não pode ser aprovada. Joaquim Pereira segue afirmando o contrário. Os dois lados deveriam conversar mais.

Frente à tamanha indefinição e em meio à falta de esclarecimentos sobre o assunto, torno público aqui o pedido que em mais de uma ocasião fiz ao presidente da Associação dos Amigos, João Carlos Goldani, para que convoque uma assembléia-geral extraordinária e solicite formalmente reunião com a secretária de Estado da Cultura, Mônica Leal, para esclarecimento desses pontos nebulosos e comunicação oficial quanto às iniciativas tomadas para resolver a crise. A assembléia serviria ainda para definir o valor da anuidade para novos sócios, com chamada pública, cumprindo o artigo 2º do Capítulo I do estatuto da Associação. Concordo com o Goldani: os cinemas não podem se manter com as anuidades dos sócios. Mas considero fundamental que sejamos uma Associação de fato, para que as decisões tomadas a respeito do futuro de um órgão público como é a Cinemateca sejam legítimas.

O Leopardo, O boulevard do crime, Cantando na chuva, My fair lady, Janela indiscreta, , Ascensor para o cadafalso, Um dia muito especial, Morte em Veneza, Rocco e seus irmãos. Grandes clássicos. E com outra coisa em comum com os demais filmes e mostras exibidos na Cinemateca Paulo Amorim e citados neste artigo: todos foram programados por Luiz Pighini, durante uma gestão que incluiu reformas totais nas três salas e uma idéia memorável: a aquisição dos direitos de reproduzir os índios guaranis de Glauco Rodrigues (aqueles criados pelo artista para as paredes do antigo cinema Cacique) em dois painéis na Sala Eduardo Hirtz."


Nascida em Porto Alegre, Laís Chaffe é diretora e roteirista do documentário Canto de Cicatriz (37min e 18min, 2005) e do curta-metragem Identidade (15min, 2002); roteirista e produtora executiva do curta Colapso (15min, 2004) e autora de Não é difícil compreender os ETs (contos, AGE, 2002, 112p). Idealizou e coordena a Casa Verde (www.casaverde.art.br), troféu Açorianos como Editora Destaque no Rio Grande do Sul. Participou de várias antologias, entre elas Contos do novo milênio (organização Charles Kiefer, 2006). Jornalista, trabalhou no Correio do Povo, Jornal do Comércio e Rádio Bandeirantes.

Comentários