O Rock que nunca existiu

O pessoal da "Revista do Opinião", uma das casas noturnas mais antigas e famosas de Porto Alegre, me pediu um artigo sobre cinema e música. O texto a seguir foi feito para a revista deles, que sai mensalmente. Escolhi escrever sobre filmes a respeito de bandas que nunca existiram, ou seja, aquelas que foram criadas especialmente para o cinema. Algumas delas ficaram tão famosas que sobreviveram mais que as produções cinematográficas que as lançaram, e chegaram a fazer shows e lançar discos. Mas acabei digitando tanto que a equipe da revista resolveu dividir o tema em três edições. A primeira saiu em final de julho e a segunda agora, recentemente, no início de setembro. A terceira e última sairá na próxima edição, no início de outubro. Mas publico aqui o artigo na íntegra para os internautas. Bom proveito!   

Quando, em Quase Famosos, William pede para sua mãe, aos 15 anos, para acompanhar a banda de rock Stillwater na estrada, um único argumento é apresentado para convencê-la: são oito minutos em que Frances McDormand (a mãe) e Patrick Fugit (o filho) ouvem, por inteiro, a clássica “Stairway to Heaven”, do Led Zeppelin. A música rola toda a seqüência sem nenhum diálogo – é magistral. Por uma questão de direitos, a cena acabou não entrando na versão final do filme, mas está nos extras (sem a canção, que o Led não liberou, é necessário rodar por fora para se ter noção do todo). Cameron Crowe, jornalista que acompanhou diversas bandas de rock em sua carreira, dirigiu esta brilhante produção de 2000 e sintetiza nesta cena a magia que todos nós cultivamos pelos palcos, bastidores e camarins destas quadrilhas da música. Heróis quando o show começa, vilões quando se desnudam tantas histórias no backstage. Por isso os filmes com bandas que nunca existiram têm o seu lugar ao seu sol: a Stillwater, por exemplo, é tão concreta quanto AC/DC ou Pink Floyd. As composições fictícias feitas apenas para a obra de Crowe (“Fever Dog”, a melhor delas) venderam discos e atualmente têm canal exclusivo no YouTube. É um dos longas mais definitivos sobre rock, estrada, astros e fãs que o cinema já produziu até hoje. E ainda por cima tem Kate Hudson, que interpreta Penny Lane, uma espécie de groupie que realmente existiu na vida de Crowe. Destaque para a cena no ônibus, onde toda a banda, Penny e o garoto William cantam a emocionante “Tiny Dancer”, de Elton John.

Uns dez anos antes, porém, o cineasta Alan Parker (Coração Satânico, Fama), já tinha flagrado desavenças por trás do palco, desajustes entre estrelas de um mesmo grupo musical e até brigas em ensaios no cuidadoso Commitments – Loucos pela Fama, lembrado aqui com uma pequena diferença: embora a banda fosse inventada, as canções todas eram verdadeiras e covers maravilhosamente bem feitos. Até porque a história tratava de grupo de amigos em plena Irlanda querendo romper barreiras e cantar clássicos do soul. Uma ideia maluca que deu muito certo: com um elenco praticamente desconhecido, composto por profissionais da música na vida real, a obra relançou no mercado os sucessos da soul music como “Mustang Sally”, “Chains of Fool” e “In the Midnight Hour”, entre tantas que foram editadas em dois discos, além de apresentações que a banda, montada a partir do longa, acabou fazendo na TV e em palcos pelo mundo afora. A curiosidade é que nesse cast estava o músico irlandês Glen Hansard, que em 2006 estrelaria Apenas uma Vez, bonito e sensível filme pelo qual ele ganhou o Oscar de Melhor Canção. Cada música é um clipe à parte, valendo cada minuto da direção de Parker. O destaque, entre as três backing-vocals dos Commitments, obviamente, ficou na memória de todos nós o nome da loiraça Angeline Ball, hoje já quarentona, mas ainda em forma.

No meio do caminho, em 1996, entre Commitments e Quase Famosos, o ator Tom Hanks surpreendeu a todos, escrevendo, dirigindo e atuando num papel bastante coadjuvante em uma obra pop bem redondinha e com todos os ingredientes dos filmes de bandas musicais: o sonho de formar uma banda, a emoção de tocar uma música na rádio, a dificuldade para comprar os instrumentos, a batalha nos ensaios, o contrato com a gravadora, a chegada ao estrelato, as brigas, os ciúmes, as apresentações memoráveis. The Wonders, nome do longa e nome da banda liderada por Guy (Tom Everett Scott, que sumiu das telas e praticamente só faz TV) é o filme tipo chiclé, que cola muito, e a gente vai ver toda a vez que passar na TV a cabo todas as vezes que passar, nem que seja uma parte. A trilha é muito boa, repleta de sucessos pegajosos, e inclui composições até mesmo do Hanks (!), que interpreta na história o empresário da banda. Além dele, as gatas Liv Tyler e Charlize Theron dão o verniz que completa a fórmula. Um bom momento do filme é quando Guy, que é o baterista do grupo, um apaixonado por jazz, encontra um velho pianista e juntos fazem um dueto. O ator Bill Cobbs é quem interpreta o também fictício Del Paxton, na cena onde rola o tema “Time to Blow”. The Wonders foi elogiado por toda a crítica internacional, mas curiosamente não chegou a ser um sucesso de público. Mas não tem festinha que até hoje não toque “That Thing You Do”, o carro-chefe da trilha sonora.

Um pouco menos pop, na tentativa de ser mais musicalmente pesado, o diretor Stephen Herek (Mr. Holland - Adorável Professor), realizou, em 2001, o longa Rockstar, sobre Izzy, um vendedor que tem a vida transformada quando seu grupo de heavy metal predileto, o Steel Dragon o convida para ser o vocalista oficial da banda. Ambientado nos anos 80, o enredo se inspira num fato verídico: quando Rob Halford abandonou o Judas Priest, em 1996, foi substituído por um cantor de uma banda de covers. O resultado de Rockstar, no entanto, acabou ficando muito mais pra Bon Jovi do que pra Black Sabbath. Nem por isso o filme é descartável: a trilha tem seus pontos altos, e vendeu muito nos EUA. Entre os hits, como se fosse de uma banda verdadeira, os fãs idolatram as canções “We All Die Young” e “Stand up and Shout”. O problema é o papel de vocalista de longos cabelos e olhar parado recaiu sobre Mark Whalberg, que depois de muitas tentativas, só agora começa a dar seus primeiros frutos, como no recente O Vencedor. O rapaz é muito fraquinho. Serve mesmo para produções como Max Payne, onde ele não precisa realmente fazer nada, a não ser lutar e dar tiros, no melhor estilo Bruce Willis (esse sim é o melhor deles). Mas seguindo a regra de todos os títulos acima, há sempre um colírio neste tipo de produção, e nesta o colírio se chama Jennifer Aniston, que interpreta a namorada de Izzy.

Uma variação muito feliz do tema é Ainda Muito Loucos, de 1998, do diretor Brian Gibson, que já tinha provado ter boa intimidade com a música cinco anos antes com o longa Tina, sobre a cantora Tina Turner. Divertido e com a rara característica de não se levar a sério, a comédia reúne dinossauros de uma banda de rock dos anos 70, que se separou no auge do sucesso e precisa reunir-se novamente para pagar algumas contas. A velha oportunidade de apresentar-se num festival, fazer um show de despedida, uma gravação comemorativa que um empresário dinheirista tem a ideia e os roqueiros topam. Contudo, passado algum tempo, eles vão sofrer um pouco para se adaptarem novamente a eles mesmos. Maniáticos, ex-estrelas, destreinados, à beira de uma aposentadoria, o reencontro é uma grande piada regada a música de boa qualidade. E com elenco que garante o pique da produção: Stephen Rea, de filmes como V de Vingança, Entrevista com Vampiro e Traídos pelo Desejo e Bill Nighy, que já fez também um roqueiro decadente em Simplesmente Amor e atuou em Piratas do Caribe e Operação Valquíria. As seqüências em que os músicos retomam a rotina de ensaios para o grande retorno da Strange Fruit, a banda dos velhacos, são impagáveis. E as faixas “All over the World” e “Scream Freedom” mostram que eles estão muito mais em forma do que muitas teens-bands...

O avô desses filmes todos é da famigerada década de 80. Não foi ambientado ou levemente inspirado nela, e sim realizado no fulgurante ano de 1984: Isto é Spinal Tap, o primeiro filme do bem-humorado ator e diretor americano Rob Reiner, o mesmo de grandes títulos como Conta Comigo e Harry & Sally Feitos um para o Outro. Em ritmo de documentário, Reiner acompanhou por quase 20 anos a banda que dá título ao longa-metragem, recheando de números musicais e entrevistas. A proposta deu tão certo que, mesmo se perguntando porque o cineasta teria escolhido uma banda tão desconhecida para fazer um registro tão nobre,
o público aprovou o filme e o grupo teve que sair em turnês e gravar álbuns verdadeiros. O hard-rock da trilha com músicas como “Tonight I'm Gonna Rock You” (entrou para o Guitar Hero), “Stonehenge” e “Big Bottons”, se tornaram realmente datados, mas o mais forte da comédia é seu roteiro que favorece o riso. As brincadeiras com as lendas musicais, como por exemplo de que os bateristas sempre morrem de formas esdrúxulas, ou de um segredo da Spinal Tap revelado no tal documentário de que seus amplificadores E olha que muita banda legendária declarou ter se identificado muito com a obra. No elenco, destaque para o próprio Reiner, que também se sai muito bem como ator, onde já trabalhou em mais de 30 produções.

Mas essa onda de filmes sobre bandas fictícias se concentrou mais nos anos 80 e 90? Sim, depois de Rockstar e Quase Famosos – que foram lançados na virada para 2000 - não se fez nada praticamente de importante. A não ser agora, no ano passado, quando o diretor Edgar Wright cunhou uma das coisas mais descoladas e geniais do cinema moderno: Scott Pilgrim contra o Mundo. Juntando como nenhum
outro a linguagem do cinema com a dos games, mais o tempero do rock ao longo de toda a história, o resultado é um divertimento só. Wright gosta de uma bagunça: em 2004 já tinha feito Todo Mundo Quase Morto, uma sátira ácida aos filmes de zumbi, que ficava na linha tênue entre a comédia e o terror. Virou cult. Scott Pilgrim não é muito diferente. A história flui muito bem, do menino-título que toca na banda Sex Bob-Omb, e tem que enfrentar os sete ex-namorados de sua garota para poder ficar com ela, na melhor referência direta ao mundo gamer dos jovens adolescentes da atualidade. As “fases” que ele tem que passar são sarro puro, com o espectador iniciando como um mero observador que aos poucos se torna um torcedor pelo triunfo do jovem herói. E de vez em quando, uma paradinha para um ensaio ou um show da banda, para detonar “We Are SEX BOB-OMB”, “Garbage Truck” ou “Treshold”, músicas na verdade compostas pelo Beck. No
elenco, Michael Cera é Scott e tem a gracinha da Mary Elizabeth Winstead, por quem ele luta tanto...

Houve ainda no cinema homenagens ao glam rock, como Hedwig – Rock, Amor e Traição, uma obra praticamente de um homem só, John Cameron Mitchell, que escreveu o livro, dirigiu e protagonizou a estranha história de um bandleader que não conseguiu se tornar mulher e desfila, ao longo do filme, os diversos sentimentos pela tela. Uma Ópera Rock trágica, exagerada propositalmente, que atinge seu objetivo, mas na época em que foi lançada (2001), permaneceu muito restrita ao seu tipo de público. Mitchell provou não ser diretor de um filme só ao fazer, no ano passado, o drama Reencontrando a Felicidade, pelo qual Nicole Kidman foi indicada ao Oscar de melhor atriz. Na tracklist de Hedwig, a faixa título, “Angry Inch”, é a que mais fica na memória. Três anos antes, também dentro do espírito glam rock, foi filmado Velvet Goldmine, com Ewan McGregor e Christian Bale, com uma banda não tão fictícia assim, uma vez que seus covers eram basicamente de músicas conhecidas e a história foi inspirada no conturbado relacionamento entre David Bowie e Iggy Pop. A direção é de Todd Haynes, ótimo cineasta que em 2007 fez Não Estou Lá, em cima da figura de Bob Dylan. O projeto teve seus cuidados máximos: a qualidade sonora foi cuidada com primazia, uma vez que Michael Stipe (R.E.M.) foi chamado para ser o diretor musical. Entre os músicos convidados, gente do The Stooges, Sonic Youth, Mudhoney e muito mais. O resultado foi, depois do filme, um álbum gravado de músicas inéditas que até hoje não foi lançado por problemas de direitos autorais. Ewan não faz feio nos vocais, como podemos ver também em outros filmes em que o autor se aventura a cantar, como em Moulin Rouge (2001).

Há ainda outros títulos menos cotados, como The Ruttles, sátira deslavada ao mundo Beatle, foi feito para a TV em 1978, e no estilo documentário também arranca risos, até porque misturou membros do famoso programa Saturday Night Live e do grupo inglês Monty Python, com participações de Dan Akroyd, Bill Murray, o finado John Belushi e de Bianca “ex-Mick” Jagger. As músicas também tinham o propósito de parodiar com as canções do célebre quarteto inglês, como “Cheese and Onions” e “With a Girl Like You”.

Músicos fake, bandas que não existem e carreiras fictícias sempre serão um bom argumento para filmes. Basta que o cinema sempre beba da melhor fonte para isso, o próprio mundo musical. Todos estes filmes tiveram sua parcela de sucesso porque músicos de verdade aceitaram a proposta e trabalharam – ou em alguns casos se divertiram – e foram verdadeiros assessores para que tudo desse certo, passando não só experiência, mas um pouco de suas vidas para dentro da tela. Suas alegrias, seus dissabores, suas depressões, seus momentos angústia no camarim, seus orgasmos no palco. Cada história dessas rende uma cena, seja ela interpretada por uma banda que exista ou não. E algumas ficam na história.

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