Experiências internacionais testam a humanização das forças de segurança

Em Portugal e nos Estados Unidos, duas experiências diferentes com motivações semelhantes: verificar se é possível responder a alguns casos policiais com um atendimento mais humano, e em algumas situações, até mesmo sem a presença de um policial, e sim com a atuação de um profissional de saúde.  Ou pelo menos, dois dois, na mesma equipe Na cidade de Denver, no estado americano do Colorado, uma em cada quatro mortes causadas por oficiais de segurança envolve alguém com doença mental grave. Isso significa que nem sempre é necessário que alguém da área policial precise resolver a ocorrência. A experiência com um profissional de saúde pode conduzir melhor o atendimento e evitar a morte. O programa-piloto adotado na cidade está mudando a estatística com resultados positivos: de junho a dezembro de 2020, em 748 chamados atendidos por uma dupla que continha uma profissional de saúde, todas as pessoas foram encaminhadas para abrigos ou centros de tratamento, e ninguém foi preso — o que certamente aconteceria caso tivessem sido atendidos por policiais. A medida desafoga os departamentos jurídicos e a própria polícia.

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O diretor da corporação de Denver, Scott Snow, é um dos idealizadores da proposta e conta que desde 2012 o currículo dos policiais vem sendo revisado e começaram a ser adotados treinamentos específicos para intervenção de crise. “A ideia não era excluir a polícia, mas se perguntar qual é a melhor abordagem que o departamento de polícia poderia oferecer, especificamente, em casos de necessidade de saúde”, diz Snow. 

O projeto foi viabilizado após, em 2018, a própria população da cidade ter votado a favor da criação de um programa para tratar doenças mentais e dependências químicas. Com um imposto de 0,25% sobre as vendas do comércio local, eles levantaram US$ 35 milhões, a fim de colocar a ideia em prática. 

Obviamente que a proposta não é substituir a polícia: os agentes de saúde não atendem chamados que envolvem alguém armado, mas socorrem pessoas à beira de um suicídio, por exemplo. Para a assistente social Carleigh Seilon, que integra a equipe, solucionar os problemas sem julgar os envolvidos é um dos focos de sua atuação. "Na rua, me visto de forma casual e me apresento sempre tentando ajudar os outros e sendo acolhedora, agindo de forma não julgadora, tentando ouvir a necessidade das pessoas e criando soluções para os problemas do momento”, diz Carleigh.


Na Europa

Em Portugal, onde as forças policiais são acusadas de condutas agressivas e preconceituosas por diversos relatórios europeus, agora vão aderir a um amplo programa de combate à discriminação. Uma das medidas é incentivar a contratação de mais mulheres e de pessoas de diferentes origens étnico-raciais. O plano, que acaba de entrar em vigor, cria a figura de agentes especializados em direitos humanos em todas as polícias do país. Esses oficiais serão responsáveis por coordenar a implementação das ações de combate à discriminação em suas instituições e por monitorar o andamento das medidas adotadas.


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A forma de recrutamento para as forças de segurança também terá alterações: a meta é ampliar a diversidade e identificar elementos extremistas antes mesmo da contratação. Um grupo de trabalho vai propor mudanças para que as provas de seleção incluam maneiras de identificar indivíduos com “níveis reduzidos de empatia, tendências para posturas radicais e intolerantes, reduzida capacidade para lidar com a frustração, agressividade exacerbada e descontrolada”, entre outras características consideradas indesejadas aos policiais.

Um dos principais objetivos do governo com essa iniciativa é também atrair para a carreira policial mais mulheres e pessoas de diferentes origens étnicas e sociais. Segundo o documento, “forças e serviços de segurança com maior diversidade, para além de serem mais ‘representativas’ da própria comunidade, constituem-se como mais eficazes na prevenção e combate a práticas discriminatórias por parte dos seus efetivos”.

De acordo com dados do Eurostat (escritório de estatísticas da União Europeia), a média de de presença feminina nas polícias do bloco é de 16,9%. Em Portugal, a GNR (Guarda Nacional Republicana), que atua nas áreas rurais, e a PSP (Polícia de Segurança Pública), que trabalha no perímetro urbano, têm respectivamente 7% e 8% de mulheres em seus quadros. No caso específico da presença feminina nas polícias, o plano estabelece como meta um aumento de 3% a cada concurso realizado.

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que tutela as polícias em Portugal, destacou a importância das ações de inclusão começarem nos processos seletivos e afirmou que existe um trabalho de “adequação das forças de segurança àquela que é a realidade plural da sociedade portuguesa”.

Responsável pela criação do plano, Anabela Cabral Fernandes, chefe da Igai (Inspeção-Geral da Administração Interna), avisou que a conduta dos policiais nas redes sociais também passará a ser avaliada com “grande atenção”.

E ela disse também que “as redes sociais são a praça pública moderna, representam o espaço público mesmo quando funcionam em grupo fechado. Quem exerce funções de garantir a paz social e o normal funcionamento do Estado de Direito tem de estar preparado para fazê-lo em todos os momentos da sua vida. Não podem, a um passo, serem os garantidores dos valores do Estado de Direito, para, quando nas redes sociais, atentarem contra esses mesmos valores que juraram honrar e defender”, afirmou.

Segundo o governo não há nenhum caso concreto para justificar as mudanças, mas, nos últimos anos, as forças de segurança portuguesas foram criticadas por relatórios do Conselho da Europa. Na semana passada, um memorando assinado pela comissária de direitos humanos Dunja Mijatovic voltou ao assunto.

“Relatos recebidos pela comissária apontam para um número crescente de casos de má conduta policial com motivação racial. A comissária recebeu também alegações muito preocupantes sobre a infiltração de movimentos extremistas de direita nas forças policiais, assim como sobre o aumento do uso da força em operações em zonas habitadas principalmente por afrodescendentes, migrantes e ciganos”, diz o texto.

Em novembro, o Comitê Antitortura do Conselho da Europa foi especialmente crítico à situação dos detentos no país. Embora afirme que a maior parte dos presos seja tratada de maneira adequada, o documento diz que há um número considerável de queixas.

“As autoridades portuguesas têm de reconhecer que os maus-tratos perpetrados por agentes policiais são uma realidade, e não resultam apenas de ações de alguns agentes transgressores”, diz o texto.

A morte de um cidadão ucraniano depois de agressões no centro de detenção temporária no aeroporto de Lisboa, sob a guarda do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), ajudou a colocar o tema da violência policial em debate. O caso aconteceu em março de 2020, mas ganhou força em outubro.

Atualmente, três agentes do SEF estão sendo julgados pelo homicídio de Ihor Homenyuk, 40. A versão inicial dos policiais, de que o ucraniano morreu devido a convulsões, foi desmentida após denúncia do médico responsável pela autópsia. O processo aponta que os integrantes do SEF espancaram e torturaram Homenyuk dentro das instalações do aeroporto. Além de apanhar, ele permaneceu por mais de 15 horas algemado com as mãos nas costas. O caso levou à queda da cúpula do SEF e ao anúncio de uma reforma no serviço de imigração, que deve perder o caráter policial.

Na avaliação do antropólogo Otávio Raposo, pesquisador e professor auxiliar do ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa), a polícia portuguesa tem condutas agressivas e de racismo estrutural. Ele destaca, no entanto, que o tipo de violência policial em Portugal é bem diferente do que existe no Brasil.

“No Rio de Janeiro, por exemplo, a polícia é responsável por um terço das mortes. A polícia no Brasil é assassina. Não faz sentido usarmos em Portugal esse adjetivo. Mas podemos dizer, sim, que a polícia portuguesa é violenta, que não são casos episódicos”, afirma.

“A violência policial em Portugal ocorre principalmente em relação aos jovens das periferias, dos bairros marginalizados. Ela não é episódica, é cotidiana. Há um problema estrutural no modo como a polícia atua.”

O pesquisador considera que a implementação de um plano de combate à discriminação é positiva, mas é preciso alterar estruturalmente a forma como as corporações atuam. O cenário ideal, segundo ele, seria a inclusão das comunidades na elaboração de estratégias de segurança. “A polícia tem uma hierarquia, tem um modus operandi que torna a violência possível. Por isso, as mudanças têm de partir de cima.”

Mesmo com os relatos de agressão e discriminação, a polícia portuguesa é responsável por um baixo número de mortes, especialmente com armas de fogo. Em 2018 e 2019, não houve nenhuma vítima fatal (com tiros) em operações das forças de segurança portuguesas. Em 2017, houve apenas duas, sendo uma delas uma brasileira, morta por engano após uma abordagem policial. O carro em que a mulher estava foi confundido com o de assaltantes em fuga e foi alvejado 40 vezes. Os policiais foram absolvidos.

Estas experiências americanas e portuguesas quem sabe, poderão abrir um profundo debate nas metodologias policiais em todo o mundo e influenciar nas estatísticas de formas de atendimento mais humanas e mais justas.

                                                                                                                                                                                          
Com informações da CNN e Jornal O Estado

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