Mudança de gênero em cartórios cresce 821% em 5 anos de permissão no RS

As mudanças de nome e gênero de pessoas trans no Rio Grande do Sul aumentaram 821%. Apenas entre junho de 2018 e maio de 2023, de acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais do estado (Arpen-RS), o número de alterações registradas em cartório chegou a 594. Em Porto Alegre, foram 144.

Marcello Camargo/Agência Brasil

Em junho, quando é celebrado o Mês do Orgulho LGBTQIAPN+, completam cinco anos que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que transexuais e transgêneros podem mudar o registro civil sem necessidade de cirurgia.

Segundo a Arpen-RS, o maior crescimento é registrado nos dois últimos anos, quando 383 dos 540 atos de mudança foram contabilizados. Entre junho de 2018 e maio de 2019, primeiro ano da regulamentação, haviam sido apenas 23 alterações em todos os 424 cartórios do estado.

Mudanças de nome e gênero de pessoas trans no RS

número de registros

  • 2018 a 2019 23
  • 2019 a 2020 91
  • 2020 a 2021 97
  • 2021 a 2022 171
  • 2022 a 2023 212

Fonte: Arpen-RS


“Desde a decisão do STF em 2018, a mudança de nome e sexo se tornou mais rápida e fácil com o procedimento sendo realizado diretamente nos cartórios de registro civil, sem necessidade de cirurgia de mudança de sexo e de autorização judicial. É mais uma medida necessária para a garantia do direito à identidade”, destaca o presidente da Arpen-RS, Sidnei Hofer Birmann.

Além do crescimento dos números, a sensação de pertencimento da população trans também aumentou.

'É uma sensação de nascer de novo'

Natan Meneguzzi Hejazi tem 25 anos, é estudante de História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente é professor do cursinho pré-vestibular TransENEM, voltado à população trans. Natan, um homem trans, registrou seu nome junto a um cartório de registro civil de Porto Alegre em janeiro deste ano.

“Minha primeira sensação foi de alívio. Tirei um peso imenso das minhas costas, um cansaço absurdo, e me senti finalmente descansado. Depois, acho que minha segunda sensação foi de ser emocionante ter um documento que te legaliza enquanto cidadão, né? Porque, por mais que a gente tenha um nome, até tu ter um documento é como se tu não existisse. É uma sensação de nascer de novo”, relata Natan.

O estudante afirma ter começado a questionar sua identidade de gênero um pouco mais de um ano antes da mudança em cartório. Em meados de 2022, começou um acompanhamento à base de hormônios. Aos poucos, passou a solicitar que pessoas próximas o chamassem por seu novo nome.

“Comecei um processo de me questionar enquanto pessoa cisgênero, que era como eu me reconhecia na época, no final de 2021. Mas eu comecei a me identificar como ‘Natan’ só um ano depois. E pedindo para as pessoas me chamarem de Natan um pouquinho e mais um pouquinho, tudo com muito acompanhamento da terapia nesse processo, que é bem difícil”, comenta.

O novo processo de retificação nos cartórios aponta um forte contraste em comparação à população trans que buscava a mudança de nome antes de 2018. De acordo com o psicólogo Paulo Roberto Alves, que atua junto à Organização Não-Governamental (ONG) Somos, com foco junto à população LGBTQIAPN+, os efeitos sobre as pessoas trans que passavam pelo processo anterior poderiam ser traumáticos.

“Essas pessoas que ainda aparecem para nós, porque 2018 foi ontem, elas trazem sintomas de trauma. Porque não é só um processo lento, é um processo que violenta no sentido em que eu só vou conseguir o que eu preciso para viver se eu assumir um personagem”, descreve o psicólogo.

Paulo relata que muitas pessoas trans precisavam recorrer a comportamentos estereotipados ou até mesmo que poderiam prejudicar a saúde clínica para obter decisões judiciais ou laudos favoráveis às mudanças de nome e gênero.

'É só o começo'

Natan reconhece que seu processo de retificação de nome e gênero foi relativamente rápido se comparado a pessoas que buscaram as alterações anteriormente. Contudo, isso não significa que o processo seja simples – ele envolve uma série de documentos (ver a lista abaixo).

"Eu fui lá achando que ia fazer 'e deu'. Não, tive que ir lá para ter acesso a toda essa lista de documentos. O processo todo durou cerca de um mês", comenta Natan.

De acordo com Caio Klein, diretor-executivo da ONG Somos, já era possível a obtenção junto a cartórios da segunda via da certidão de nascimento, um dos documentos necessários, de forma gratuita. Apesar de extensa, a lista com o restante da documentação também pode ser obtida pela população trans sem custos.

“Os demais documentos são certidões negativas, que o próprio Poder Judiciário expede. Elas podem ser obtidas nos portais Judiciário, seja federal ou estadual, na Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral, Justiça Militar. Todos podem ser obtidos na internet".

"A gente acaba ajudando as pessoas a coletar esses documentos, porque como existe ali uma certa burocracia, muitos não estão acostumados ao contato com esses documentos, então parte do nosso trabalho também ajudar essas pessoas a coletar os documentos da internet, orientar quais são os documentos necessários”, comenta Caio.

Além dessa documentação, há a necessidade de se obter a certidão negativa de protestos junto a cartórios, que tem custos. Em 2023, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) garantiu a gratuidade para o processo quando as certidões têm a finalidade de alteração do prenome e gênero, salientando a importância de empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos.

A medida entrou em vigor em março de 2023 e é válida em todo o território gaúcho para quem declarar não ter meios suficientes para arcar com as taxas solicitadas – a chamada hipossuficiência. Auxílio para a solicitação também pode ser buscado junto a Somos.

Após ter a certidão de nascimento retificada em mãos, documento que o cartório de registros naturais é capaz de corrigir, começa uma busca pela retificação de outros documentos por parte da população trans. Documentos como carteira de identidade, certificado de alistamento militar e mudanças em contas bancárias, de água ou luz. Natan relata que essa parte é a mais dolorosa do processo.

“Esse processo de buscar documentos também inclui nós, pessoas trans, irmos a cada um desses lugares e falarmos que somos pessoas trans. Então é um processo desgastante fisicamente e financeiramente. (...) As pessoas não têm preparo para atender as pessoas trans. Elas falam várias vezes o ‘nome morto’ da pessoa trans”, lamenta Natan.

Natan relata, por exemplo, situações de constrangimento impostas por uma servidora em uma empresa pública e também no Exército, onde foi buscar a certificação requerida a homens. Caio acredita que o trabalho de capacitação é fundamental para aprimorar o atendimento à população trans.

“Não basta as pessoas fazerem a retificação se a gente continuar mantendo algumas relações que continuam oprimindo essas pessoas. É fundamental seguir trabalhando na capacitação do serviço público”, comenta Caio.

Como fazer?

A Arpen-Brasil criou a "Cartilha Nacional sobre a Mudança de Nome e Gênero em Cartório", que pode ser acessada online. No documento, são apresentados os passos para o procedimento e os documentos exigidos pela norma nacional do CNJ.

Só podem ser alterados, por vez: o nome inicial; a indicação de gênero; o nome inicial junto à alteração de gênero; e os nomes que são indicativos de gênero, como, por exemplo, Filho, Júnior, Neto e afins.

Para realizar o processo de alteração de gênero e nome nos cartórios, é necessário:

  • a apresentação de todos os documentos pessoais
  • comprovante de endereço
  • certidões dos distribuidores cíveis, criminais estaduais e federais do local de residência dos últimos cinco anos
  • certidões de execução criminal estadual e federal, dos Tabelionatos de Protesto e da Justiça do Trabalho.

Na sequência, o oficial de registro deve realizar uma entrevista com o(a) interessado(a).

As taxas envolvidas nos processos de obtenção de documentos variam de acordo com o estado em que o cartório está localizado. No RS, é gratuito para quem comprovar não ter condições financeiras.

Cabe ao cartório comunicar o órgão competente sobre as alterações, assim como aos demais órgãos de identificação sobre a alteração realizada no registro de nascimento.

A emissão dos demais documentos devem ser solicitadas pelo(a) interessado(a) diretamente ao órgão competente por sua emissão.

Não há necessidade de apresentação de laudos médicos e nem é preciso passar por avaliação de médico ou psicólogo.

Fonte: G1



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