Em cinco anos, RS dobrou o número de presos que obtiveram remição de pena por meio do estudo

O exemplar com páginas amareladas de O Xangô de Baker Street, livro lançado por Jô Soares em 1995, tem sido o inseparável companheiro de cela de Paulo (nome fictício), 43 anos, no último mês. Anteriormente, ele teve suas noites e dias atrás das grades acompanhados por obras de Moacyr Scliar e de Ernest Hemingway. Condenado a três anos de prisão, mais do que um passaporte para a vida fora do cárcere, a leitura se tornou, também, um meio de reduzir a pena de Paulo.

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Assim como ele, mais de 9,8 mil apenados obtiveram a remição de pena através do estudo em 2023 no Rio Grande do Sul. O número representa mais que o dobro de 2019, quando 4,8 mil presos receberam o benefício. Os dados são da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo do Estado (SSPS).

— Antes de ser preso, eu não tinha o hábito da leitura. O livro é um passaporte que me leva para outro lugar. É uma forma de desenvolvimento pessoal, não só aqui dentro, mas lá para fora também — comenta o preso.

Na Penitenciária Estadual de Canoas 1 (Pecan1), onde Paulo cumpre pena, 76 dos 560 apenados realizam algum tipo de atividade educacional vinculada ao Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos (Neeja) que pode contar para a remição de pena. A casa prisional também conta com 45% dos detentos exercendo algum tipo de trabalho, sendo que 16% são atividades remuneradas.

— Temos aulas no turno da manhã, tarde e noite, no Ensino Fundamental e Médio, para contemplar os trabalhadores também. Estamos angariando outros projetos como oficinas de costura, para que a ressocialização ocorra, de fato, aqui dentro — explica a diretora da Pecan 1, Camila Tomazetti.

O acervo da penitenciária conta com mais de 5 mil exemplares entre clássicos literários, volumes didáticos e enciclopédias, todos adquiridos por meio de doação. Até 2023, Paulo era quem ocupava o posto de bibliotecário da Pecan 1.

Ele conta que já trabalhou como motorista de aplicativo, como coordenador no ramo imobiliário e como auditor. Hoje, ele trabalha dentro da penitenciária com a costura de calças. Anos antes da prisão, ele iniciou uma graduação em Educação Física e anos depois em Administração, mas precisou interrompê-las.

Ele ainda não sabe quanto tempo de pena já conseguiu diminuir, mas espera alcançar sua liberdade em novembro de 2025. Seu principal desejo é reencontrar a esposa e os três filhos, de 10, nove e oito anos, com quem só se comunica por cartas mensais. Ele pediu que não fosse visitado por eles enquanto estivesse preso.

— Às vezes a gente comete erros e muitas pessoas querem nos julgar. Quando eu sair, eu quero buscar o perdão de Deus para dar sequência à minha vida — pontua.

Pai de duas crianças autistas, Paulo tem o sonho de montar uma lanchonete adaptada para acomodar confortavelmente outras crianças como os filhos.

Sobre a remição pelo estudo

O preso tem direito à redução de um dia de pena a cada 12 horas de estudos, que podem ser divididas em, pelo menos, três dias, segundo o artigo 126 da Lei de Execuções Penais (LEP). Antes de 2011, a LEP só previa a remição por meio do trabalho.

Foi a partir da Lei 12.433, sancionada em 29 de junho de 2011 pela então presidente da República Dilma Rousseff, que o estudo passou a ser válido para a obtenção do benefício. 

O titular da SSPS, Luiz Henrique Viana, diz que entre 2022 e 2023 a oferta de educação formal — Ensino Médio e Fundamental — para pessoas privadas de liberdade no RS foi ampliada em mais de 1,5 mil matrículas. Em março de 2023, o benefício teria alcançado 10,09% da população encarcerada, o que representa 4.396 pessoas em atividades formais de estudo.  

—  Utilizar do período de reclusão para ampliar o conhecimento, muitas vezes inacessível nas ruas, pode ser um caminho promissor para aqueles que realmente estão abertos a uma mudança de vida — diz o secretário.

Segundo a secretaria, as matrículas das pessoas privadas de liberdade cresceram 78,2% entre março de 2021 e março de 2023. Para o regime fechado, a taxa de ampliação foi de 26,4% no período, atingindo, em março do ano passado, 2.741. Em relação às pessoas em prisão provisória, a elevação foi de 81,6%. Já para os regimes semiaberto e aberto o incremento de matrículas foi, respectivamente, de 1.102,7% e 600%. 

Conforme a SSPS, o número de professores vinculados aos Neejas Prisionais aumentou no período em mais de um terço, subindo de 268 para 366, o que impacta na oferta de ensino. Outro fator que sugere melhora na qualidade e a expansão do incentivo ao estudo é a queda do número de alunos evadidos da educação formal. Em março de 2021, havia o registro de 33 evasões, enquanto no mesmo mês de 2023 não houve nenhuma.

Entre 2019 e 2024, o governo do Estado firmou diversos termos de cooperação para oferta de Ensino Superior às pessoas privadas de liberdade. Segundo a pasta, atualmente são 46 bolsas de estudo concedidas. Há termos assinados com a Univates (10 bolsas), Unisc (10 bolsas), UCPel (10 bolsas), Unijuí (cinco bolsas) e UPF (cinco bolsas). Em 2022, foi formalizada uma parceria com a UFSM, para atividades de ensino, pesquisa e extensão. Além disso, também foi firmado um termo via Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), que disponibilizou seis bolsas.

O que pode contar para a remição:

Atualmente, são considerados para a remição de pena categorias educacionais como:

  • Alfabetização;
  • Educação complementar profissionalizante;
  • Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja);
  • Exame Nacional do Ensino Médio (Enem);
  • Ensinos Fundamental, Médio, Superior e Técnico;
  • Leitura de livros;
  • Justiça Restaurativa, entre outros.
  • Ressocialização

A juíza Sonali da Cruz Zluhan, da 1ª Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, avalia que a remição da pena por meio do estudo é de “extrema importância”.

— Por exemplo, um presídio de 2 mil presos possui somente em torno de duzentas vagas de trabalho. O restante são presos ociosos ou que trabalham somente para ganhar remição, como faxineiros, paneleiros. Assim, se estes presos pudessem estar em sala de aula, com certeza ampliaria horizontes e daria uma nova perspectiva de vida, ao ser libertado. Caso contrário, os apenados cumprem a pena por um tempo, sem nada aprenderem, e saem sem qualquer perspectiva de melhora de vida, voltando para o mesmo lugar de origem e muitas vezes pior, pois perdem qualquer apoio que possuíam antes de iniciar o cumprimento da pena — pontua a juíza.

Ela acrescenta ainda que a grande maioria dos presos não possui sequer o Ensino Fundamental completo. Além disso, a magistrada aponta que entre os desafios enfrentados pelo método está a falta de conscientização de que o preso deve ser devidamente atendido, para retornar à sociedade após o cumprimento de pena.

— A falta desta conscientização causa vários entraves e praticamente nada é oferecido ao apenado. Desta maneira, ele somente é recolhido, por um período de tempo, e solto. Retornando a conviver no mesmo lugar de onde foi preso anteriormente, sem ter nenhum tipo de aprendizado. Assim, enquanto não houver um sistema que ofereça condições diferenciadas no cumprimento da pena, o que ocorre é que estamos somente gastando dinheiro em presídios que servem unicamente para afastar a pessoa do convívio social, por algum tempo (pois não existe no Brasil a prisão perpétua) e devolvê-lo, após, ainda pior — conclui.

Incentivo à leitura

Em 2021, houve mais um avanço com a Resolução Nº 391 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que ampliou as modalidades de estudos contemplados incluindo, por exemplo, a leitura de obras literárias.

A resolução do CNJ determina um prazo de 21 a 30 dias para a leitura da obra a partir da data de empréstimo do livro. Além disso, o apenado tem 10 dias após esse período para apresentar um relatório de leitura a respeito da obra que será remetido à Vara de Execuções Penais.

Cada obra lida corresponde à remição de quatro dias de pena com limite de até 12 livros lidos e avaliados por ano. Com isso, o preso conseguiria reduzir até 48 dias da sua sentença a cada ano.

A lei prevê que as atividades de estudo podem ser desenvolvidas presencialmente ou a distância. Aqueles que estudam fora do estabelecimento penal precisam comprovar mensalmente a frequência e o aproveitamento escolar por meio de declaração da unidade de ensino.

Coordenadora do Censo Nacional de Leitura no Sistema Prisional e Socioeducativo, a professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) Christiane Russomano Freire sublinha que, além da ressocialização, a leitura nas unidades prisionais também promove o resgate da subjetividade dos apenados.

— Essa questão não se relaciona apenas com a redução dos dias de pena, mas ela resgata toda uma subjetividade, humanizando, de alguma forma, o cumprimento da pena privativa de liberdade. Possibilita que pessoas que não tiveram possibilidade de estudar fora, estudem dentro do sistema prisional. É um espaço de superação de todas as dinâmicas violentas da prisão — frisa.

Refúgio na literatura

Preso há um ano e dois meses, José (nome fictício), 72, cumpre uma pena de 17 anos na Pecan 1. Há cerca de um ano, ele começou a frequentar a biblioteca. Como já tem o Ensino Médio completo, ele não frequenta as atividades do Neeja. Ele também optou por não aderir ao trabalho prisional pois acredita que com isso estaria tomando a vaga de outra pessoa mais jovem que possa estar precisando, como Paulo, com quem fez amizade na biblioteca.

— A leitura nos envolve, nos engrandece, nos faz passar o tempo melhor — diz José.

Mesmo antes de saber da possibilidade de remição, José já tinha o hábito da leitura. No período em que está preso, ele leu pelo menos 12 livros. A preferência de José é pelos livros espíritas. Entre as obras lidas estão títulos como A Mansão da Pedra Torta, O Judeu e A Joia da Grécia.

Até o momento, a leitura já descontou um ano e oito meses de sua pena. Em sua vida pregressa, ele trabalhou por mais de três décadas no serviço público, na área de Tecnologia da Informação. Pai de cinco filhos, ele diz que é “terrível” estar preso.

— O mais difícil é a saudade. Eu nunca havia ficado longe da minha família tanto tempo. Quando sair daqui quero ver minha mulher, meus filhos e minha bisneta que nasceu enquanto eu estou aqui. Quero reconstruir minha vida — finaliza.

Confira a reportagem original em GZH

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