LEITURA DE DOMINGO: Patrimônio histórico vira estratégia de desenvolvimento

Toda a vez que uma casa antiga vai abaixo, vão junto com ela todas as histórias e memórias de pessoas que viveram naquele espaço: retratos de toda uma época que acabam desaparecendo no tempo. Iniciativas de restauro de patrimônio histórico arquitetônico têm pipocado por vários municípios gaúchos, muitos deles ancorados em empreendimentos que buscam o pitoresco da casa antiga como atrativo para alavancar os negócios. É o caso do projeto de restauro da Casa e Moinho Ellwanger (foto), construção datada do século XIX que Rosa Maria e a filha Julia querem transformar em um espaço cultural e gastronômico, no município de Sapiranga.

Marcelo Curia/Divulgação


Memórias que geram renda

Uma casa antiga não é apenas uma edificação que atravessou os séculos e resistiu ao tempo, mas carrega em si a história viva de todas as pessoas que passaram por ela, de famílias inteiras que, em sucessivas gerações, ajudaram a escrever um pouco da história de cada um de nós. Preservar o patrimônio histórico é perpetuar e ressignificar as vivências dos nossos antepassados a partir do restauro e da manutenção dessas casas, muitas delas usadas até hoje como moradia, mas também transformadas em espaços culturais, gastronômicos, museus que, além da preservação da memória em si, ajudam a fomentar a economia da comunidade que a cerca.

A arquiteta e sócia da Escaiola Arquitetura Rara, Juliana Betemps, afirma que, ao longo do tempo, os projetos arquitetônicos de casas históricas passaram a se sustentar muito na vocação turística desses espaços. "É possível fomentar uma coisa com a outra, uma via de duas mãos, porque o patrimônio se ampara na potencialidade turística para sua sustentabilidade econômica e muitas vezes o turismo busca o patrimônio, enquanto atrativo cultural, fazendo com que ele permaneça vivo", avalia. Além do turismo, iniciativas na área de gastronomia e da cultura também se tornaram constantes em edificações históricas, como é o caso do Vila Flores, no Quarto Distrito de Porto Alegre.

O arquiteto e gestor do espaço, João Felipe Vale, afirma que mais do que uma tendência, esse movimento é necessário e urgente. "É preciso olhar com mais cuidado para a questão da memória, pois sem ela a sociedade fica fragilizada, pois não entende seu passado. A arquitetura nos possibilita vivenciar a história e ser muito criativos no uso dessas estruturas existentes e valorizar nossa memória", afirma Vale.

O interesse das pessoas por elementos antigos tem favorecido essa tendência de promoção da preservação de edificações históricas, considerada como um nicho de mercado diferenciado da construção civil, mais especializado, e por isso com grande empregabilidade. "É uma área que tem movimentado a economia pelo uso das casas para fins econômicos, mas não só isso: gerando emprego e renda, não só da mão de obra, mas também de arquitetos, de engenheiros, historiadores, produtores culturais, museólogos", destaca o arquiteto e sócio da Studio1 Arquitetura, Lucas Volpatto.

Além disso, é importante destacar a questão da sustentabilidade ambiental dessas edificações, pois restaurar gera bem menos resíduo do que iniciar uma obra do zero. A preservação de patrimônio histórico também desempenha um papel fundamental na revitalização urbana e na promoção da sustentabilidade. Restaurar edifícios antigos, em vez de demolir e construir do zero, pode ser uma alternativa ambientalmente mais sustentável, já que preserva recursos naturais e evita a produção de resíduos. Além disso, essa prática contribui para a preservação do caráter cultural das cidades, tornando-as mais atrativas para moradores e visitantes.

A reabilitação de áreas urbanas históricas pode transformar espaços decadentes em polos de desenvolvimento econômico, revitalizando centros urbanos que, muitas vezes, enfrentam dificuldades econômicas. Além disso, a restauração de edifícios antigos, com foco na sustentabilidade, pode atrair empresas interessadas em adotar práticas mais ecológicas, o que abre novas oportunidades no setor de construção e design sustentável.

Dados do Sebrae sobre turismo histórico-cultural apontam que, nesta modalidade turística, a cultura é o principal atrativo: pode ser a história, as pessoas, o cotidiano, o artesanato, a comida. Este tipo de turismo se consolida pelo elo entre identidade, memória e patrimônio-cultural de uma localidade, sendo a identidade a fonte de significado e experiência de um povo, memória: constitui a identidade, tanto coletiva quanto individual. É um elemento importante para o reconhecimento e a valorização de indivíduos ou grupos.

O patrimônio histórico-cultural produz a sensação de pertencimento, memória e identidade como é o caso do Viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, em obras desde 2022 e que será entregue à população, até o final deste ano, com muitas novidades. Os 31 espaços comerciais que ficam em toda a extensão do monumento serão destinados a empreendimentos gastronômicos e lojas que serão administrados pela iniciativa privada como forma de manter o ponto turístico em atividade.

Para isso, o Sebrae-RS em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre realizou um estudo de viabilidade econômica como ponto de partida para a elaboração de um edital que passará a gestão do local à iniciativa privada. "Trata-se de um estudo de oportunidades e de viabilidade para possíveis empreendimentos que queiram ocupar os espaços. Fizemos uma pesquisa histórica de resgate das origens do Viaduto, dos primeiros empreendimentos que ali ocuparam, das características dessa região", afirma Roger Klafke, especialista no Mercado de Alimentos e Bebidas do Sebrae-RS.

Também foi realizada uma pesquisa, ouvindo moradores do Centro Histórico, pessoas que circulam pelo local e empresários que têm negócios no centro de Porto Alegre e que chegaram a ocupar os espaços ali. "Complementamos ouvindo especialistas do setor de alimentos e bebidas aqui em Porto Alegre, empresários que atuam na gastronomia para ter a visão deles", diz Klafke. Isso possibilitou entender quais são as necessidades da comunidade para aqueles espaços e fazer sugestões também para que essas oportunidades cheguem nos empreendedores, priorizando produtos regionais, locais e pequenas empresas que queiram ocupar as lojas.

Cultura, história e geração de renda mantêm a Vila Flores

A história do Quarto Distrito da Capital e das famílias que ali trabalhavam segue viva na Vila Flores, um antigo vilarejo que foi resgatada a partir do restauro arquitetônico iniciado há 15 anos e que se tornou um dos espaços culturais mais pulsantes da capital gaúcha. O conjunto, que é patrimônio cultural considerado como um centro de vivência comunitária, se transformou em um ponto de encontro para iniciativas artísticas e de empreendedorismo social e ambiental.

Um dos gestores do projeto, o arquiteto João Felipe Wallig conta que a vila abriga exposições, shows, oficinas, eventos e um espaço gastronômico. O local recebe uma comunidade criativa formada por cerca de 30 iniciativas ligadas à arte, e quem faz toda essa promoção cultural é a Associação Cultural Vila Flores. "Temos três apartamentos ocupados na Vila que funcionam como locais de trabalho e moradia e também interagem com o espaço expositivo e com as atividades culturais, criando uma dinâmica ecossistêmica no uso do local. As pessoas trazem seus ateliês, suas produções artísticas, as oficinas e isso criou uma noção de economia circular", explica Wallig.

A Vila Flores é um conjunto arquitetônico construído na década de 1920, inicialmente projetado para servir como moradia para trabalhadores das indústrias da região. Ao longo dos anos, as estruturas físicas do complexo sofreram com a degradação, especialmente nas décadas de 1990 e 2000, quando a falta de manutenção e a mudança no perfil industrial da área comprometeram a conservação do imóvel. "O conjunto foi ficando cada vez mais abandonado, com estruturas comprometidas, até que, em 2009, a Defesa Civil interveio devido ao risco iminente de colapso", relembra Wallig. Em seu auge de degradação, a Vila Flores quase foi demolida, mas resistiu ao processo de abandono.

A virada ocorreu quando a família proprietária do imóvel, em conjunto com gestores e apoiadores, decidiu iniciar um processo de regeneração física e cultural do espaço. O arquiteto explica que o complexo não é tombado, mas possui uma proteção municipal como imóvel de estruturação. Embora a proteção seja importante, ela é mais frágil em comparação ao tombamento, o que dificulta o acesso a recursos federais ou estaduais para restauração mais aprofundada.

Entre os projetos que fazem o complexo Vila pulsar está o Canteiro Vivo, uma iniciativa de educação patrimonial que realiza atividades de formação em restauro para inserção de trabalhadores no mercado da construção civil na área de preservação de edificações históricas. "É uma cooperação técnica junto com a ONG Mulher em Consciência, que forma mulheres para se inserirem no mercado da construção civil, além de aumentar a possibilidade de geração de emprego e renda para elas com oficinas de revestimentos de fachada e trabalho com as aberturas, como janelas e portas", explica o arquiteto.

Além disso, existem projetos que estabelecem relação com outras associações do entorno da Vila, como o De Vila a Vila que envolve a comunidade do Vila Flores e da Vila Santa Teresinha. O projeto nasceu para pensar a melhoria da qualidade de vida no território do Quarto Distrito de Porto Alegre por meio de projetos culturais, artísticos e educativos de bases comunitária e colaborativa, com foco na formação de adultos, jovens e crianças para um futuro de autonomia social e econômica. "Tem o programa Catavento ligado à economia criativa que envolve e capacita agentes da economia colaborativa, empreendedores criativos, artistas e parceiros de diferentes áreas, além das vileiras e vileiros residentes na Vila Flores", explica Wallig.

A oferta de oportunidades para geração de emprego e renda anda de mãos dadas com a questão histórica do local, cujas histórias são incessantemente buscadas pelos gestores da Vila para que a memória não se apague. Quando se fala de preservação de patrimônio é feita uma analogia com uma colcha de retalhos, que une informações diversas, a partir do conhecimento que é passado de forma oral, uma busca constante.

"Sempre que alguém diz que conhece quem morou aqui, fazemos um movimento para nos aproximar dessa pessoa e registrar esses relatos", afirma Wallig. A área expositiva da Vila conta também com objetos pessoais de moradores antigos do local que mostram como o conjunto era nos seus áureos tempos.

Um ponto de encontro entre o passado e o presente, o contemporâneo e a memória. Assim é a Cantina Lando, um espaço gastronômico moderno, típico italiano, que se destaca entre os restaurantes da Rua dos Andradas, em Porto Alegre, por ocupar uma das edificações históricas mais lindas da capital gaúcha: a Casa Egípcia, ou Edifício Varejão.

Ao transpor os portões da casa, datada de 1914, as pessoas iniciam uma viagem no tempo, pois a cantina não é apenas um restaurante; ela mantém viva a história do local e da imigração vêneta, reafirmando a importância da memória para compreender e valorizar a identidade do Sul do Brasil. "Escolhemos essa casa para a cantina justamente pela arquitetura e por entender que, cada vez mais, os clientes gostam desse clima que remete ao passado, às memórias e à história daquele lugar. E nada melhor do que uma casa histórica para contarmos a nossa história", afirma um dos sócios da Cantina Lando, Vilmar Lando.

A casa de três andares, projetada pelo arquiteto Otto Menchen e concluída em 1914, foi símbolo de um período de prosperidade urbana e hoje ajuda a manter viva a memória das famílias italianas: as paredes da cantina são adornadas por ditados e dizeres escritos em vêneto, recordando a língua dos antepassados que ecoou nas primeiras casas de pedra e madeira construídas pelos imigrantes.

"É um gesto de preservação da memória linguística que acompanha a memória das famílias. Além disso, a homenagem se estende visualmente: nas paredes da edificação histórica, quadros retratam diversas famílias italianas, enaltecendo a trajetória coletiva da imigração", afirma o arquiteto da Studio 1 Arquitetura, responsável pela obra de restauro da casa, Lucas Volpatto.

Lando conta que o investimento para reformar a casa passou de R$ 1 milhão, e contemplou o salão no térreo e uma sala no segundo piso que funciona como espaço de jogos. A aposta na casa antiga segue e a família Lando projeta investir mais

"Restaurar acaba saindo mais caro: tivemos que fazer toda a tubulação elétrica, de esgoto. Ela estava bem precária. Mas compensa pela popularidade que essas casas antigas têm. Elas ajudam a impulsionar os negócios", pondera Vilmar. Esse é o segundo prédio histórico que a família Lando escolhe para empreender: o anterior, também na Rua dos Andradas, tinha característica de bar e acabou sendo repassado, em função da enchente. A retomada veio justamente com o Edifício Varejão.

A edificação reflete o contexto sociocultural de Porto Alegre entre 1900 e 1920, quando obras imponentes, como a prefeitura e o Margs, surgiram impulsionadas pela ascensão econômica da elite. Nesse cenário, o neoclassicismo e o fachadismo se firmavam como estilos de prestígio, valorizando a ornamentação como símbolo de status. A fachada apresenta uma linguagem eclética: embora predominem traços clássicos, há uma mescla com elementos Art Nouveau e referências egípcias, organizados de forma simétrica e equilibrada. "A Casa Egípcia simboliza uma época de transformações urbanas e sociais, em que a arquitetura era palco de afirmação de poder e identidade", completa Volpatto.

A preservação do patrimônio histórico sempre foi um tema controverso e parece que a possibilidade de conservar a memória das edificações, aliada à geração de renda dá uma nova luz ao tema. Nessa entrevista, o conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) e coordenador da Comissão de Patrimônio Cultural e coordenador adjunto da Comissão de Organização e Administração do CAU/RS, José Daniel Craidy Simões destaca que preservar por preservar não é a saída, pois os bens do patrimônio cultural devem ser vistos como elementos geradores de oportunidades de negócios e que deveriam existir políticas específicas para o setor, unindo o poder público e os proprietários dos imóveis.

Empresas & Negócios - É possível falar em tendência de restauro de patrimônio histórico com vistas ao uso econômico desses espaços? Para turismo, cultura, gastronomia?

José Daniel Craidy Simões - Via de regra, os bens do patrimônio cultural são entendidos como um problema na visão de proprietários, que têm a obrigação de mantê-los. Esta abordagem que estás trazendo, sobre patrimônio para geração de emprego e renda é muito importante, pois um prédio antigo, cheio de memória, realmente deveria ser entendido como elemento gerador de oportunidades de negócios. Mas, esse interesse em empreender em casas históricas ainda é eventual e depende muito da localização de cada uma delas. Casas ideais para negócios quase sempre têm estacionamento próximo, tem relação direta com consumidor, por estar no percurso que ele faz pra casa, ou pro trabalho, entre outros fatores.

E&N - E como o senhor avalia essa proposta de algumas construtoras de preservar fachadas e, até mesmo casas inteiras, e construir edifícios modernos contíguos?

Simões - O termo preservação, por si só, já define: é a manutenção de um prédio com importância simbólica e histórica para a sociedade. Quando se fragmenta essa edificação, estamos partindo para outro tipo de abordagem que se afasta da ideia de preservação. E o problema é quando isso vira uma prática muito corrente, como tem ocorrido em Porto Alegre. A medida que temos políticas que determinam que só a volumetria (paredes externas e telhado) é importante, o corpo dessa edificação passa a não ser e isso dá uma deturpada da ideia de preservação.

E&N - No Centro Histórico tem uma série de garagens e até centros gastronômicos onde se mantém apenas a fachada da casa histórica? Como tem funcionado essa questão, pois muito pouco efetivamente se preserva?

Simões - Teve uma fase anterior à primeira lei do inventário, que se reconheceu que apenas as fachadas deveriam ser preservadas em alguns endereços. E isso gerou uma série de estacionamentos, nos quais as pessoas demoliam o corpo das edificações e mantinham a fachada. Na rua Andrade Neves, no Centro Histórico, a gente encontra alguns casos assim.

E&N - Como tem se dado esse processo de manter apenas as fachadas e há quanto tempo, em Porto Alegre?

Simões - Na Capital, essa situação começa no final dos anos de 1980, numa casa na Rua Duque de Caxias, esse é um tema que eu abordei inclusive na minha na tese de doutorado, pois preservar por preservar não é uma solução. Deixar só a fachada não significa preservar. Deveriam existir políticas entre o poder público e os proprietários que obrigassem a manutenção desses prédios inteiros. Deveria inclusive ser feito um trabalho de conscientização e informação dos proprietários dessas casas sobre as infinitas possibilidades que uma edificação histórica reúne.

E&N - Como funciona essa relação com os donos dos imóveis? Será que eles têm noção de que têm em mãos uma peça rara da arquitetura e que podem transformá-la numa entidade de geração de renda?

Simões - Eles recebem a notícia de que a casa deles faz parte do conjunto de bens do patrimônio, mas eles não recebem informações sobre editais que possam participar voltados à preservação, fontes de fomento, políticas públicas de financiamento. Via de regra, os proprietários não sabem nada disso. Em paralelo, vai-se gerando uma ideia de que esse tipo de propriedade é um problema. As possibilidades de fomento da minha propriedade existem, mas eu não conheço. E isso ao longo de décadas vai gerando um grande problema. A descontinuidade de políticas publicas geram uma complexidade muito danosa para a cidade de forma geral, falta de informação é um obstáculo muito grande.

E&N - E como costumam ser as edificações mais atraentes para a implantação de negócios?

Simões - O que diferencia um lugar do outro? O local onde essas casas estão, mas sobretudo a relação que elas têm com a população. Essas edificações que perduram ao longo do tempo e são usadas comercialmente são muito bem localizadas. Elas têm um destaque arquitetônico que foi pensado a partir de um cenário urbano economicamente pujante, no passado. Que gerou uma fachada interessante. E isso tudo dá a possibilidade de longevidade de uma atividade econômica nessas casas. Elas oferecem toda uma linguagem, um aspecto histórico, identitário que são muito interessantes e que diferenciam e destacam um lugar do outro. E a localização é chave, é isso que torna as cidades interessantes, porque a gente tem ingredientes que são próprios dali, são autênticos.

E&N - Recentemente, duas casas históricas do Centro de Porto Alegre foram demolidas, após terem sofrido um incêndio. Na época o CAU lançou uma nota questionado se havia a real necessidade de demolição. Parece existir uma vulnerabilidade muito grande dessas edificações, como vocês veem essas questões?

Simões - Acredito firmemente que as fachadas poderiam ter sido preservadas, mas este tipo de análise depende de um laudo de um responsável técnico sobre ele. Solicitamos a existência deste documento à Prefeitura de Porto Alegre, mas até agora não tivemos respostas. E achamos muito estranho um incêndio ali, um mês depois da demolição do esqueletão. Pega fogo e, em seguida, demolem. Não tem como afirmar nada que uma coisa esteja relacionada com a outra, mas gera uma desconfiança. Boa parte dos imóveis do Centro, entendidos como patrimônio cultural tem ou tiveram uma relação direta com atividade comercial. A cidade de Porto Alegre, que teve uma atividade portuária durante toda sua pujança econômica, era cheia de casas de comércio de diferentes escalas. Só que é preciso ter cuidado para não privilegiar a importância econômica de determinada edificação, em detrimento sua da importância. culturais.

Moinho Ellwanger mantém vivas a história e a cultura alemãs

Um sonho de preservar as raízes, a memória e o legado dos antepassados alemães deu origem ao projeto de restauro da Casa e Moinho Ellwanger, construção datada do século XIX e que, agora, vai se transformar em um espaço cultural e gastronômico, no município de Sapiranga (RS).

"Restaurar a casa e o moinho era um sonho antigo da família. Preservar este patrimônio exige, em nossos dias, atender a uma série de requisitos legais e dar um novo uso ao local, o que foi tomando forma ao longo dos últimos anos. A arquitetura em enxaimel e o moinho são um legado dos antepassados, construído em condições muito adversas. O interesse e a persistência de minha filha Julia fortaleceram a decisão de preservar", afirma a descendente da família e uma das idealizadoras do projeto, Rosa Maria Ellwanger.

A ideia de restaurar o local surgiu como forma de manter viva a história da família, do lugar e de um modo de vida, mantendo o moinho ativo, como uma referência cultural, onde as pessoas também poderão desfrutar da natureza da Mata Atlântica que circunda o local.

"Conseguimos o tombamento da edificação e agora vamos criar uma associação para, a partir dela, buscar recursos junto a Leis de Incentivo à Cultura. Assim, daremos prosseguimento à primeira etapa do restauro e reabilitação para utilização do espaço, reconectando-o com a comunidade, promovendo atividades culturais e que movimentem a economia local e contribuam para a manutenção do próprio espaço", afirma a arquiteta e coordenadora do projeto, Julia Wartchow, filha de Rosa e trineta do casal João Ellwanger e Maria Margaretha Auler que construiu o moinho.

A ideia é possibilitar que a casa tenha múltiplos usos, com um restaurante nos finais de semana e áreas para uso da comunidade, durante a semana, além de uma loja com produtos locais. "Vamos montar uma cozinha industrial para viabilizar o restaurante, promover oficinas por meio da associação, com foco em desenvolvimento local, além do atrativo do próprio moinho, de uso diferenciado por produzir azeite e por estar completo e preservado, em seu local original", explica Julia. Além disso, o local conta com o benefício de ser próximo do centro de Sapiranga e de fácil acesso a partir de cidades do Vale dos Sinos e de Porto Alegre.

Rosa conta que o lugar evoca memórias da sua primeira infância. "Ali andei a cavalo, comi muita bergamota, cana de açúcar, amendoim, melancia, aipim. Subi o morro Ferrabraz, bastante íngreme no local onde fazia piquenique, com vista para Sapiranga, na área que pertencia ao meu pai", relembra.

Junto com as memórias de Rosa, o processo de restauração do local trouxe à tona outras tantas, até então escondidas no imaginário de pessoas da comunidade que frequentavam o local, no passado. "Tínhamos poucas informações, meus avós falavam muito pouco sobre o assunto. As histórias chegaram de forma fragmentada de pessoas que conviveram com o moinho. Ouvir os relatos delas, junto com a pesquisa em documentos, nos ajudou a costurar a história do local", conta Julia.

Até hoje, o moinho é conhecido na região por ter sido um local de reunião da comunidade para eventos festivos e também de moradores que levavam grãos para moer para gerar iluminação para as casas, a partir da produção de azeite de amendoim, usado nas lamparinas das residências. O resgate de memórias do local levou Rosa e Julia a visitarem os vizinhos mais próximos, alguns da época dos avós e familiares de Rosa.

"Creio que esses encontros reavivaram memórias, valorizaram vínculos existentes naquela época onde havia uma comunidade muito interdependente, que se apoiava mutuamente diante das dificuldades, formava redes, com cada vizinho escolhendo uma atividade produtiva diferenciada que permitisse trocas. Era um tempo em que quase não havia circulação de dinheiro, como dizia o meu pai", recorda Rosa.

O envolvimento dela com o uso da terra acabou influenciando na escolha profissional pelo curso de Agronomia. "Depois de casada, meu marido e eu chegamos a implantar hortas no local, criar abelhas e ter uma vaquinha de leite. A história acabou interrompida, pois nos mudamos para a Alemanha para um período de estudos", conta Rosa.

Trabalho de restauro movimenta toda a cadeia da construção civil

A economia se movimenta, junto com o processo de conservação de prédios históricos, também nos bastidores, ou seja, nos canteiros de obras. Os trabalhos de restauro envolvem uma grande cadeia que vai desde a elaboração do projeto arquitetônico, passando por um apanhado histórico e cultural do prédio a ser recuperado, até a obra propriamente dita, gerando trabalho e renda para todos os seus elos.

Algumas empresas, como a Escaiola Arquitetura Rara, atuam com todos esses componentes, desde as primeiras medidas para elaboração do projeto arquitetônico, até a última telha da cumeeira.

"A empresa faz desde o projeto arquitetônico em si, até o resgate histórico, a elaboração de projetos culturais quando necessário, projetos complementares, elétrico, hidráulico, climatização, estrutural, tudo que vem a interferir diretamente no restauro do bem", afirma a arquiteta Juliana Betemps que, junto com a colega Cristiane Halber é a fundadora da empresa.

Ao longo do tempo, elas foram percebendo que os projetos arquitetônicos se sustentavam muito na sua vocação turística, e a Escaiola hoje foca no restauro de patrimônio histórico de projetos voltados ao setor. "É o nosso nicho de mercado trabalhar com essas duas vertentes, sendo que muitas vezes uma complementa a outra".

Sobre a questão, da importância econômica da recuperação e manutenção do patrimônio histórico, Juliana diz que a geração de emprego e renda é constante, no momento em que se envolve toda uma gama de profissionais da construção civil, além de outros profissionais, quando se trata de resgate cultural. "É uma multidisciplinaridade, pois trabalhamos também com historiadores, turismólogos, museólogos, psicólogos, produtores culturais", diz Juliana.

A arquiteta acredita que o que faz determinada edificação ter importância é tudo o que aconteceu dentro dela, além da relevância arquitetônica do exemplar, o recheio de cada projeto acaba sendo a parte cultural dele junto com toda a história que se desenrolou ali. "Muitas vezes estão ligados à memória afetiva das pessoas. É esse recheio que faz tudo fazer sentido. E a gente vê todo dia um prédio ou outro indo abaixo, sem que as pessoas se deem conta de quanto eles contam uma história de toda uma comunidade", afirma.

Entre os projetos da Escaiola com o viés de negócios está a Casa Amália Noll, que se tornou um centro cultural no município de Feliz. "Na década de 1960, o espaço, que já tinha abrigado um comércio, o primeiro Sindicato Rural de Feliz e um salão de baile, virou um cinema, um marco cultural, vocação que segue após o restauro", afirma Juliana.

É da Escaiola também a Pousada Frida e Magna, de São Vendelino, cujo proprietário herdou a casa antiga da família, restaurou e transformou no empreendimento. Também a Estação Férrea de Farroupilha, o centro cultural casa da Mulher Imigrante, de Alto Feliz, entre outros.

O arquiteto e sócio da Studio 1 Arquitetura, Lucas Volpatto, diz que a empresa trabalha com a temática do patrimônio cultural edificado em diversas escalas e nas esferas pública e privada, em especial no Rio Grande do Sul, e destaca a questão da geração de vagas no setor. "Há fomento de emprego e renda em todo o processo da obra e de pesquisa, como também de quem trabalha no órgão público, fiscaliza e que gerencia esses bens tombados ou tutelados", destaca.

Entre os projetos da equipe de Volpatto estão a ampliação e transformação do Espaço 373 em uma nova casa de shows em Porto Alegre, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) que tem uma característica comercial, a Cantina Lando e a Casa e Moinho Ellwanger. "Fazemos muitos projetos de igrejas que também são um negócio, além de casas que viraram lugares de acolhimento, de vinhos, de degustação. Tudo com essa temática de valorar o patrimônio e vice-versa, como se fosse uma retroalimentação", pontua.

Fonte: Ana Esteves/Jornal do Comércio

Ana Esteves é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Atuou como repórter setorista de agronegócios no Jornal do Comércio, Correio do Povo e Revista A Granja. Hoje, atua como assessora de imprensa e repórter freelancer. Também é graduada em Medicina Veterinária pela Ufrgs.


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