Retribuição

Fujo da pauta deste blog de cinema porque é necessário. Perdi meu pai há pouco mais de 24 horas. Ele se foi na manhã deste sábado 21 de abril. Todo mundo esperava em algum momento, por causa de seu estado de saúde, mas ninguém esperava nessa madrugada, ainda mais que seu coração parasse durante um sono tranqüilo. Não consigo dormir, não consigo relaxar, só consigo pensar em retribuir as coisas que ele me deixou. Ivan Antunes Martins, advogado, professor, pintor de mais de 200 quadros, compositor clandestino, ator amador, escritor sem livro editado, repórter eventual, músico destreinado. De onde vocês acham que eu tirei inspiração e energia para tantas atividades ao mesmo tempo? Consegui dizer algumas palavras antes do sepultamento, e acho que refresquei a memória daqueles que já o tinham guardado como um homem fraco, quieto, magro e de olhar parado. Toda minha a adolescência e um pouco da fase adulta vi exatamente o contrário: um Ivan com o dom da comunicação, da oratória, da animação, da pouca timidez e do vocabulário farto. Liderava grupos religiosos na igreja, dava palestras, aulas na Universidade Federal, defendia seus argumentos em tribunal. Filho de Ari, com quem não convivi, mas herdei a paixão pelo cinema, preparou mal a sua aposentadoria e deixou as coisas que amava muita rapidamente. A Universidade o aposentou após a primeira safena. Parou de pintar, as tintas secaram. Começou a esquecer os acordes das músicas que ele mesmo compusera e o também dedilhar do samba-canção que o próprio me ensinou. Conseguiu a casa de seus sonhos, mas muito longe do escritório, que teve que abandonar mais tarde. E depois abandonou a casa. Em meio a tudo isso, desgostos e bobagens cometidos por nós, seus filhos, que ele observava silenciosamente. Descobriu o computador, ainda deu um último suspiro artístico escrevendo livros digitais. Mas logo depois os olhos já não permitiram mais sustentar os romances na tela. Muitos ficaram sem final.


Num domingo ensolarado, revi gente - parentes, amigos, colegas -, alguns que não via há mais de 20 anos. A vontade era de conversar com cada um, saber mais de suas vidas. Mas provavelmente muitos só verei daqui a 20 anos novamente. Como retribuir tamanho carinho? Ir à enterro é uma das coisas mais chatas e deprimentes que existe, seguida do velório. E teve gente que foi aos dois. O pai estaria exultante, mesmo que acabrunhado numa cadeira, como ficou nos últimos tempos. Se sentiu importante. Como retribuir a tanta gente? Ouvi tantas frases de apoio. Vozes distantes, outras mais criativas. Foram render sua homenagem a este homem simples, que sonhava alto - e que fez aprender esta lição também. Morreu sem conhecer Paris. Talvez um dia eu convença o resto da família a levar as cinzas dele até lá e jogar no Sena. Melhor ainda se financiado pelo clã Martins. Amava o mar, nadava como peixe. Me ensinou a ler aos dois anos. Me ensinou a dirigir. Me ensinou a fazer gemada com a clara e o ovo batidas separadamente. Como retribuir uma gemada destas, suculenta, derramando-se açucarada até a borda?


Ainda bem que consegui fazer o João Vicente conviver com ele quase dois anos. Como retribuir à Silvia? Mais recentemente o netinho mais novo lhe dava alegria e uma saudável preocupação - com as gripes, as tosses, os remédios. Ligava para saber como tinha sido a consulta. Uma certa vivacidade que tinha se ido alguns anos antes. E este filho desaba pelo segunda ou terceira vez no sábado fatídico quando o nenê pergunta, olhando para a cadeira de balanço: "bobô?" - com a mãozinha espalmada virada pra cima. "Viajou. Para São Paulo" - foi só o que me ocorreu. Talvez tivesse sido bem melhor uma passagem para o Rio, ou, já que a violência é tanta, qualquer praia do Nordeste. Ivan teria gostado mais. Ivan: João em russo. Martins, da Póvoa do Varzim, cidade portuguesa à beira do mar. Claro. Até cair todas as nossas fichas, minhas, do meu irmão, da minha mãe, vou ficar tentando descobrir pensando o que podia ter feito mais. Sem arrependimentos, apenas olhando para a vida o que eu poderia ter feito melhor. Talvez eu ainda possa: cuidar mais de mim e ser um bom pai, como ele foi. Como retribuir lição mais rica do que essa?

Comentários

Unknown disse…
Fico sem palavras nessas horas, mas saiba que meu carinho e pensamento positivos estão contigo e tua familia nessa hora, um grande abraço e força.
Trajano disse…
Caro Renato.

Triste gostaria de dizer que guardo do "tio Ivan" a simplicidade, simpatia e carinho com que tratava todas as pessoas ao seu redor.

Neste momento certamente lembrarás de momentos maravilhosos vividos com teu pai com saudade e muita tristeza.

Felizmente a vida com o tempo fará com que passes a lembrar destes momentos com muito orgulho e como exemplo de vida.

Sinceramente espero que esta janela de tempo seja rápida para você e toda a sua família.

Um abraço sincero.

Neco
Ricardo Martins disse…
Ser um bom pai não significa acertar sempre, pois todos os pais erram, mesmo querendo o melhor para os filhos e desejando ser bons pais.
Mas aprendi sendo filho do Ivan que ser um bom pai é amar e amar e amar. Todos os dias, em todas as horas. Aquilo que é meta para muitos místicos evoluídos, para meu pai era prática do dia-a-dia: o tal amor incondicional.
Renato, vc vai errar, e errar muito, mas será um bom pai se passar SEMPRE a sensação de que o João é muito amado desde o primeiro minuto, e que continuará assim, mesmo nas sombras e pisadas de bola da vida.
Isso foi o que de mais importante aprendi sendo filho do Ivan: de que fui amado desde que me conheço por gente, e todos os dias, e isso é metade do caminho ou mais para sermos felizes como criaturas, e acreditarmos que o amor é bom e existe mesmo.

Fluindo, amigão! bjo
André Bozzetti disse…
Muita gente não se dá conta que a maior herança que se pode deixar pra quem fica são justamente os ensinamentos.

Dinheiro e bens podem sumir, mas o que nós aprendemos vai com a gente pro resto da vida.

Força nessa hora e aproveita muito bem tudo que teu pai te passou, pois isso é a coisa mais bonita que que teu filho um dia vai poder guardar de ti.

Grande abraço,
André Bozzetti
Rodrigo Rocha disse…
Não há o que dizer nessas horas, pelo menos nunca achei que palavras aliviassem esse vazio. O carinho de amigos, colegas e família são uma benção. Li tua homenagem emocionado, certamente minhas palavras morreriam na garganta. Seu Ivan parte confortado com tanto amor demonstrado em palvras, gestos e pensamentos. Força irmão!!
Unknown disse…
Pois é! Sabe q postei algo parecido na comunidade do EJC? Muita gente, talvez a maioria, conhece o vô antes mesmo de eu pensar em nascer, viveram outras histórias, conheceram outras virtudes, por aí vai.
Eu o conheci como "Vô Ivan", como meu avô, como amigo, companheiro, do tipo q colocava a bicicleta no porta-malas pra mim andar em quanto ele caminhava em Ipanema, do tipo q me ensinou a fazer barquinhos de madeira para brincar na piscina, que colocava a camiseta "caça-gatas" para dar uma voltinha em Capão Novo, que apresentava "Los Hermanos Martines" dando salto mortal na piscina de mãos dadas, que deixou o seu dom artístico vagando no sangue de toda a família, enfim, lembro do Ivan por meu avô, o Vô Ivan, que tempos mais tarde morei junto e incomodei bastante, e ele sempre com o seu amor incondicional e silencioso, nunca me disse "eu te amo", mas deixou claro sem nenhuma dúvida o quanto me amou. INCONDICIONALMENTE!!!
O mesmo pensamento q tu tens eu to vivendo na pele!
Como agradecer tudo isso???
Ele não foi "um" cara, mas sim, "O" Cara. Com certeza foi e é meu maior exemplo da figura masculina correta e de bem.
To absorvendo as coisas desta forma...
Ao invés de tentar entender o que não tem como entender, tenho somente que aceitar. Ponto!
O q eu posso fazer eu tenho feito, no fundo tudo que aconteceu deixou todos, principalmente os mais próximos muito mexidos, sensíveis.
Essa sensibilidade e a dor da perda vem como força para fazer diferente todos os dias, tentar fazer como o Ivan fazia, com a entrega e intensidade que ele fazia. Nunca tinha perdido ninguém tão próximo e ligado, por isso nada parecido me passou pela cabeça antes, mas agora, além de saber q tenho ele perto, para qualquer coisa, imagino que ele também esteja nos observando, isto sim acaba sendo a maior lição de tudo! Imaginar que ele está observando e não decepcionar, antes pelo contrário, surpreender! Isso talvez seja o q de melhor o Vô Ivan me deixou.
A vontade de agradecer se traduz nisso.
To contigo "tio" Renato, vamos nos dedicar mais do nosso tempo, não ser tão escravos da nossa rotina e tentar fazer o que nosso velho fazia, reunir a família, cada vez maior, com apensos, filhos, etc, e nos curtir. Fazer mais e melhor, por nós mesmo!!

Com carinho, meio (meio/metade como tu diz) para o Ivan e meio para ti.

Bj!!!

Fui!!!
Negreiros disse…
As boas lembranças são a luz no caminho. Valorizá-las com amor transforma a dor e dá vida nova. Força. Fé.
Márcia disse…
Andar com fé é saber que cada dia é um recomeço. É saber que temos asas invisíveis.
Andar com fé é olhar as portas desconhecidas com a mão estendida para dar e receber.
Andar com fé é usar a força e a coragem que habitam dentro de nós, quando tudo parece acabado.
Tudo, menos o amor, pois este sempre viverá.
E amor de mãe e amor de pai (que já aprendemos) são únicos e verdadeiramente incondicionais, onde quer que estejamos...e onde o Ivan está, no céu, junto do Pai.
A enorme admiração pelo Ivan é a maior retribuição de cada um de nós.
Um abraço carinhoso!
Márcia Ferreira
Unknown disse…
Caro RENATO MARTINS,
Fico completamente sem palavras...
Parabéns pelo blogger e pelos textos!
Desejo sucesso!
Um grande Abraço
Jorge Curtis
51 99998776
Unknown disse…
Olá Renato,
Parabéns pelo texto e fica um grande abraço de conforto.

Desejo sucesso!

Um abraço

Jorge Curtis
51 99998776
Unknown disse…
Não gostaria de estar comentando este assunto ,mas fica meus pensamentos positivos e meu carinho pra toda família. Muita força! Abraço!